A Atuação do Ministério Público nos Tribunais Penais Internacionais

AuthorCarlos Augusto Canêdo
PositionDoutor em Ciências Penais pela Faculdade de Direito da UFMG e Professor da PUC Minas e da UFMG
Pages56-78

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O presente artigo buscará, em linhas gerais, oferecer um panorama da atuação do Ministério Público nos tribunais penais internacionais atualmente em atividade, vale dizer, os tribunais penais internacionais ad hoc para a exyugoslávia e Ruanda e o recém criado Tribunal Penal Internacional (International Criminal Court), pelo Estatuto de Roma.1 Os dois primeiros já vêem desenvolvendo suas atividades desde, respectivamente, 1993 e 1995. O Tribunal Penal Internacional para a antiga Yugoslávia foi criado através das resoluçõesPage 57808, de 22 de fevereiro de 1993 e 827 , de 25 de maio de 1993, do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. À par das polêmicas políticas e jurídicas acerca de sua criação (questionou-se a oportunidade e os interesses políticos subjacentes à sua criação assim como a legalidade da criação de um Tribunal Penal Internacional através de resolução do Conselho de Segurança da ONU), o tribunal encontra-se desenvolvendo suas atividades, a partir de sua sede, localizada em Haia, na Holanda, e, não obstante dificuldades de não pouca monta para levá-las adiante (escassa cooperação política de alguns Estados, dificuldades para a realização de investigações, restrições orçamentárias etc), algumas importantes sentenças já foram proferidas e espera-se que, ao final, terá valido a pena sua criação.

Já o Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi criado através da Resolução 955, também do Conselho de Segurança das Nações Unidas, datada de 8 de novembro de 1995. Este Tribunal possui ainda mais dificuldades para realizar suas funções como, por exemplo, o baixo grau de cooperação do governo de Ruanda. O Ministério Público tem centrado seus esforços na persecução de membros do governo interino de Ruanda durante o genocídio (realizado entre os meses de abril e julho de 1994), de líderes militares e religiosos, chefes de administrações locais e responsáveis pelos meios de comunicação à época. Paralelamente à atuação do tribunal, o governo de Ruanda aprovou, em 1996, a lei orgânica número 896, de 30 de agosto, sobre a organização da persecução de condutas constitutivas de crimes de genocídio e contra a humanidade, cometidos desde primeiro de outubro de 1990, com penas que vão desde ao pagamento de indenização pecuniária à de morte (calcula-se que mais ou menos umas seis mil pessoas já foram julgadas estabelecendo-se umas quinhentas condenações).2

Neste capítulo, enfocaremos com especial atenção, a constituição e as atribuições da Procuradoria perante o Tribunal Penal Internacional criado como decorrência do Estatuto de Roma, reservando aos dois outros apenas rápidas considerações. Isto porque, o recém criado Tribunal Penal Internacional assim o foi com pretensões de se tornar uma corte criminal de caráter permanente, investindo-se da missão de julgar aqueles crimes cujos graus de gravidade estão acima de qualquer dúvida e para cuja necessidade de repressão convergem todas as representações dos diversos modelos jurídicos existentes. Na medida em que este Tribunal - não obstante já tenha sido criado, com Juízes e Procurador devidamente designados - iniciou muito recentemente suas atividades, buscaremos tão somente propiciar ao leitor, e ainda assim em caráter embrionário, uma visão da atuação da Procuradoria no decorrer das investigações e processos a serem instaurados pelo Tribunal. Trata-se apenas de uma visão geral da atividade do Ministério Público perante o tribunal e um maior aprofundamento na sua atuação será facilitado a partir do momento Page 58em que o Tribunal desenvolver mais efetivamente seus trabalhos. A partir desta experiência concreta, novas nuances e aspectos do trabalho ministerial poderão ser melhor analisados e perscrutados facilitando um labor crítico mais consciencioso e aprofundado.

1. O Ministério Público e sua atuação perante os Tribunais ad hoc para a Ex-Iugoslávia e Ruanda

A primeira importante observação é que os Estatutos que regulam o funcionamento desses Tribunais possuem um esquema quase idêntico, recepcionando princípios tais como o da responsabilidade individual, da cooperação dos Estados com os Tribunais e o da proibição do bis in idem. Existem diferenças com relação ao âmbito de competência material dos Tribunais (especificamente na aplicação das Convenções de Genebra)3mas o que necessita ser ressaltada é a questão da prevalência desses Tribunais sobre as jurisdições nacionais, vale dizer, ao contrário do Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma, as jurisdições dessas Cortes internacionais possuem primazia vis a vis os Tribunais internos. (art. 9.2, das regras de procedimento). Isto significa que à Procuradoria - que atua concomitantemente perante os dois Tribunais4 - caberá provar a existência de crimes capazes de deslocar a jurisdição dos Estados para o Tribunal Internacional5.

Quel López (2000. P. 320) sintetiza o procedimento a ser observado: "El instrumento previsto para tal fin es la demanda de desistimiento regulada em los artículos 8 a 13 de las reglas de procedimiento. Procesalmente, los pasos necesarios para la realización práctica de la cesión son esencialmente tres: información de los Estados cuando se conozcan infracciones relevantes de la competencia del Tribunal (art. 8); requerimiento del fiscal a uma Sala de primera Instancia para que sea el Tribunal, a la vista del cumplimiento de las condiciones requeridas em el artículo 9 de las reglas de procedimiento quien proceda a cursar la correspondiente demanda ante las autoridades nacionales competentes, y, por último, formulación por la Sala de una solicitud de desistimiento incluyendo el requerimiento de cuantas elementos del proceso interno sean relevantes para la instrucción procesal ante el Tribunal Penal Internacional (art. 10).6

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Relevante notar que se trata de uma iniciativa discricionária da Procuradoria e não necessita estar acompanhada de nenhum instrumento formal de acusação, bastando a existência de indícios fundados da responsabilidade do suspeito pela prática de um dos crimes submetidos à jurisdição do Tribunal.

No que diz respeito aos fundamentos do pedido, o Procurador pode, em primeiro lugar, invocar divergência de tipificação dos atos. É o caso em que os códigos penais nacionais não tipifiquem condutas que podem ser enquadradas como crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou genocídio. Poderá, ainda, sustentar a existência de procedimento fraudulento na ordem interna com o objetivo de subtrair a jurisdição do tribunal internacional ou apontar as insuficiências de um processo interno.

"En este punto, alega Quel López, merece uma especial atención la cuéstion del incumplimiento de la demanda de desestimiento por el Estado requerido em el plazo razonable estimado por el artículo 11 del Reglamento em sesenta días desde la notificación de la decisión de la Sala de primera instancia. Al margen de los supuestos de mala fe derivados de la actuación de autoridades implicadas em el conflicto, el posible incumplimiento podrá provenir, la mayor parte de las veces, de la no adopción por los Estados de las correspondientes normas internas que garanticen la aplicación del Estatuto del Tribunal y de las reglas de procedimiento. Em efecto, como es evidente, y el presidente Cassese se há cansado de recordar sin demasiado éxito, la adaptación de la legislación interna es uma pieza esencial de la operatividad del Tribunal a los efectos de garantizar su competencia y dar cumplimiento a los mandatos de cooperación".7

O Tribunal para a antiga Yugoslávia constitui-se em um êxito apenas parcial. Alguns dos principais responsáveis pelos crimes cometidos continuam em liberdade. O General Mladic e Radovan Karadsic são os dois principais exemplos. Em compensação, o ex-presidente Slobodan Milosevic encontrava-se preso e processado, até o seu falecimento. Ademais, causou perplexidade a pouca disposição da Procuradoria para investigar e punir determinadas ações das forças da OTAN no episódio da intervenção no Kosovo. Sob a alegação de falta de material de prova suficiente, nada foi feito. Alguns casos, como o já citado caso Tadic, surgem como importantes precedentes para a aplicação de uma justiça penal internacional. No entanto, certa lentidão dos trabalhos e algumas dificuldades de cooperação se afiguram como óbices a um desenvolvimento mais satisfatório dos trabalhos.

O balanço, ainda provisório, que se pode fazer a respeito do tribunal para Ruanda, nos leva a perceber uma conjugação de pontos positivos e negativos. Entre os primeiros, é de se registrar que pelo menos parte da cúpula político-militar responsável pelos massacres foi responsabilizada não obstante muitos processos ainda se encontrem em andamento sem uma previsão clara de quando e como sePage 60encerrarão. Este Tribunal exarou, pela primeira vez, no âmbito penal internacional, uma sentença por crime de genocídio, considerando violações massivas como parte integrante da definição deste delito.8

O principal ponto negativo parece se centrar na acusação, direcionada à Procuradoria, de não iniciar nenhuma persecução contra membros da RPF (Ruanda Patriotic Front), de etnia tutsi e vencedora do conflito, dando a impressão de tratar-se...

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