Biodiversidade e Propriedade Industrial: Um Exame Jurídico do Conhecimento Tradicional

Author1. Carlos Alberto Rohrmann - 2. Lyssandro Norton
Position1. Professor de Direito Virtual e Coordenador Geral da Pós-Graduação da Faculdade de Direito milton Campos. Doutor em Direito pela University of California, Berkeley. mestre em Direito pela UFmG e pela UCLA. - 2. mestre em Direito, Procurador do Estado e Professor da UNA e do UNI-BH.
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Introdução

A busca pela conciliação entre as iniciativas de proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento econômico é verdadeiramente uma preocupação mundial.

Neste sentido, a necessidade de um desenvolvimento sustentável tem sido imposta aos setores produtivos.

A preocupação com o tema não é recente. Alguns instrumentos jurídicos já regulavam internacionalmente, desde o início do século XX, a relação entre meio ambiente e desenvolvimento, podendo ser citadas a Convenção sobre a Preservação da Fauna e da Flora, de 1933, e a Convenção Internacional para a Regulação da Caça das Baleias, de 1946.

Recentemente, a procura por um desenvolvimento mundial sustentável tem aberto diversas frentes de pesquisas e propiciado o entendimento de diversos países em torno de algumas questões importantes, como se depreende, por exemplo, do Protocolo de Kyoto e da Convenção de Diversidade Biológica (CDB).

A CDB, resultado da Conferência das Nações Unidas para o meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD) (Rio 92), realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, constitui um dos instrumentos internacionais mais importantes relacionados ao meio ambiente. Foi assinada por 168 países e ratificada por 188, sendo certo que estes últimos se tornaram Partes da Convenção.

Importantes marcos legais e políticos, que orientam a gestão da biodiversidade em todo o mundo, têm sido definidos pela CDB, tais como o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura; as Diretrizes de Bonn; as Diretrizes para o Turismo Sustentável e a Biodiversidade; os Princípios de Addis Abeba para a Utilização Sustentável da Biodiversidade; as Diretrizes para a Prevenção, Controle e Erradicação das Espécies Exóticas Invasoras; e os Princípios e Diretrizes da Abordagem Ecossistêmica para a Gestão da Biodiversidade.

Também no âmbito da CDB, foi iniciada a negociação de um regime internacional sobre acesso aos recursos genéticos e repartição dos benefícios resultantes desse acesso. Tal iniciativa, entretanto, tem discutível efetividade, posto que a CDB não teve a assinatura dos Estados Unidos da América, maior detentor de registros de patentes e marcas.

No bojo dessas iniciativas, a biodiversidade tem ganhado destaque desde o início da última década, principalmente pelo interesse de diversos setores econômicos e ambientais em torno do tema.

O Brasil, o país mais rico do mundo em biodiversidade, detentor de 30% (trinta por cento) das florestas tropicais e 22% (vinte e dois por cento) do total mundial de sementes, conforme veremos no tópico 3.1, tem importante papel no cenário mundial.

No entanto, a ausência de instrumentos jurídicos adequados tem permitido, ou até mesmo incentivado, a ocorrência de grandes controvérsias acerca do tema, comPage 48acusações de apropriação indevida da biodiversidade brasileira e do conhecimento tradicional a ela associado.

Vários são os casos noticiados em que empresas de diversas nacionalidades utilizam-se de conhecimentos tradicionais de comunidades brasileiras para produzir os mais variados itens comerciais, registrando as respectivas patentes e explorando marcas, com a acusação de desprezo pelas comunidades detentoras deste conhecimento tradicional.

Não se pode, contudo, generalizar a ponto de se atribuir ao setor produtivo todos os males do acesso à biodiversidade, nem, muito menos, desconhecer os benefícios que podem ser trazidos à população mundial por algumas descobertas relativas, principalmente, à exploração honesta e racional da flora, citando-se, como exemplo, a indústria farmacológica.

Constituem grandes equívocos tachar de “biopirataria” toda e qualquer iniciativa relativa à exploração da biodiversidade e, da mesma forma, caracterizar como “conhecimento tradicional” todo e qualquer procedimento que utilize qualquer recurso natural, sem que se tenha previamente um trabalho de pesquisa sério e apto a identificar a comunidade responsável por seu desenvolvimento, sua originalidade e seu processo produtivo.

Decerto que não há como simplesmente impedir o acesso à biodiversidade apenas pelo receio de esbulho de eventual conhecimento, talvez tradicional, de uma ainda não identificada comunidade. muitas são as interrogações relativas ao tema, mostrando-se, portanto, imprescindível a instituição de instrumentos jurídicos aptos a regular com precisão a proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais a ela associados.

Uma das alternativas apontadas recentemente para a regulação jurídica da matéria é a utilização do arcabouço do instituto da propriedade intelectual como possível forma de garantir maior segurança às comunidades tradicionais e às empresas que desejam explorar regularmente o potencial brasileiro.

Busca-se, neste trabalho, tratar do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, não adentrando em temas, também fecundos, como os conhecimentos tradicionais relativos a outras áreas como a artística ou a literária.

Inicialmente, definir-se-á conhecimento tradicional associado à biodiversidade, traçando um panorama das normas jurídicas internacionais e nacionais já editadas sobre o tema.

Será abordada, ainda, a normatização da propriedade intelectual, com ênfase para a propriedade industrial, especialmente para as patentes.

Buscar-se-á, principalmente, uma análise dos possíveis conflitos entre a aplicação das normas relativas ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade e daquelas relativas à propriedade industrial.

O objetivo do trabalho é a pesquisa de alternativas para solução dos conflitos normativos decorrentes das distinções entre o Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPs) (Acordo sobre Aspectos de Direitos da Propriedade Inte-Page 49lectual relacionados ao Comércio) e a CDB, que assegura aos detentores dos conhecimentos tradicionais a justa repartição dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos.

A exposição de possíveis soluções sobre a pesquisa realizada será feita nas considerações finais.

1. Conhecimento Tradicional Associado à Biodiversidade
1.1. Definições

Antes mesmo de se adentrar nas polêmicas que circundam o tema, há que se tratar da definição de conhecimento tradicional associado à biodiversidade, distinguindo-o, de início, dos conhecimentos tradicionais relativos a outras áreas.

Conhecimento tradicional associado à biodiversidade é a informação ou a prática de determinadas comunidades indígenas ou locais, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, transmitida, geração a geração, nas mais diversas formas, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético da diversidade biológica.

Neste trabalho será abordado apenas o conhecimento tradicional associado à biodiversidade.

Com efeito, as comunidades tradicionais produzem conhecimentos de toda sorte, em áreas da cultura, como artística ou literária.

A proteção das criações artísticas e literárias deverá ser feita por meio do reconhecimento dos direitos autorais coletivos, como ensina Juliana Santilli.3

Biodiversidade, segundo a CDB, é o conjunto de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.

Já os conhecimentos tradicionais são, na lição de Guilherme Cruz de mendonça4, aqueles desenvolvidos e acumulados por populações tradicionais, passados oralmente de geração em geração, podendo estar, ou não, associados à biodiversidade.

Para a Organização mundial de Propriedade Intelectual, o Conhecimento Tradicional é definido como “tradição literária, artística ou científica, performances, invenções, descobertas científicas, desenhos, marcas, nomes e símbolos e outras inovações e criações resultantes da atividade intelectual nos campos da indústria, ciência e das artes”.5

Destaque para a doutrina estrangeira, na lição de J. michael Finger, ao examinar o trabalho de Coenraad J. Visser:

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Visser reexaminou como os instrumentos legais modernos tais como a patente e o direito de autor podem ser usados para proteger o conhecimento tradicional. Começa oferecendo um senso intuitivo de qual o significado do termo ‘conhecimento tradicional’. Aproximando-se principalmente do costume da WIPO, explica que a categoria inclui expressões tradicionais e tradições culturais baseadas em informações de expressões tais como estórias, música, dança, trabalhos de artes e habilidades, incluindo símbolos, marcas, e outras expressões de conceitos tradicionais. Engloba...

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