Jurisdição no Ciberespaço

AuthorAlexandre Atheniense
PositionAdvogado sócio de Aristóteles Atheniense Advogados, Graduado em Direito pela UFMG, possui especiali-zação pelo Berkman Center Harrvard Law School em Internet Law (2001 e 2003) e Propriedade Intelectual (2001), Coordenador e Professor do Curso de Pós Graduação de Direito de Informática.
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1. Introdução

Já no limiar do novo século, a Internet no Brasil atingiu uma nova etapa com a entrada no mercado de provedores gratuitos e o conseqüente aumento de usuários. Com esse alavancamento do público consumidor, várias empresas passaram a vislumbrar a possibilidade de prestar serviços ou vender produtos através da grande rede.

Tal mudança de cenário trouxe grandes conseqüências para o Direito. O Direito da Informática, até então, envolvia-se apenas com problemas relacionados à propriedade intelectual e ao Direito Autoral. Isso porque os computadores funcionavam isoladamente ou em redes corporativas. À exceção das empresas de atuação no comércio exterior que já vinham praticando transações eletrônicas, valendo-se da criptografia simétrica ou da rede de compensação Swift, raros eram os casos em que o comércioPage 100eletrônico pudesse causar algum litígio que nos despertasse o interesse pelo estudo da jurisdição no ciberespaço.

No momento em que a Internet deixou de caracterizar-se apenas por sites de conteúdo meramente institucional e passou a dispor de sites que comercializavam produtos, tangíveis ou não, e prestavam serviços, por uma conseqüência lógica e tradicional inerente às relações humanas, vários problemas e conflitos de interesses se afloraram. Essas lides interfaceiam o Direito da Informática atual com os diversos ramos tradicionais do Direito.

Prova disso é, atualmente, ser comum tomarmos ciência pela mídia da prática de difamação em sites, da contratação de empregados no estrangeiro para suporte e desenvolvimento de sistemas por meio do tele trabalho, de consumidores insatisfeitos com a aquisição de produtos adquiridos em sites de comércio eletrônico, além de empresas que tenham sido usurpadas de refletir a sua marca registrada mediante registro antecipado de terceiros dos seus domínios na Internet.

Outros inúmeros exemplos nos levam à reflexão sobre a necessidade de uma releitura de nossos textos legais visando a interpretálos à luz dos fatos ocorridos no meio eletrônico. Tal estudo conseqüentemente poderá levar à reavaliação de alguns conceitos tradicionais do Direito, em razão desse novo espectro que se cria através da Internet.

Justifica-se, portanto, a necessidade e a temporalidade deste estudo, uma vez que a aplicação correta dos preceitos legais inerentes à jurisdição, diante das transações eletrônicas no mundo eletrônico sem fronteiras, tem sido uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos operadores do Direito.

2. O conceito tradicional de jurisdição

Nessa linha de raciocínio, impende examinar o conceito de “jurisdição” sob a ótica dos tradicionais juristas que estudaram a matéria.

Etimologicamente, a palavra “jurisdição” é derivada do latim. Segundo De Pláci-do e Silva, a palavra jurisdictio (ação de administrar a Justiça) origina-se das expressões jus dicere, juris dictio2.

É todo poder ou autoridade conferida à pessoa, em virtude da qual pode conhecer de certos negócios públicos e os resolver. É o poder de julgar que, decorrente do imperium (poder que decorre da autoridade suprema ou do poder soberano), pertence ao Estado. E, este, por delegação, o confere às autoridades judiciais e às autoridades administrativas.

Na interpretação de Maria Helena Diniz, é o poder de dizer o direito3. Depreende-se da lição da ilustre jurisconsulta a necessária identificação do aspecto geográfico, bem como a atribuição exclusiva do seu exercício pelo Poder Judiciário, vejamos: É a administração da Justiça pelo Poder Judiciário. Consiste no poderdever Page 101de aplicação do direito objetivo conferido ao magistrado. É atividade exercida pelo Estado para aplicação das normas jurídicas ao caso concreto. Área territorial onde a autoridade judiciária exerce seu poder de julgar; compreende o poder de decisão, o de ordenar notificação das partes ou testemunhas, o de documentação (que advém da necessidade de representação por escrito dos atos processuais e rege-se pelo princípio da investidura, da indelegabilidade e da aderência ao território).

O exercício do jus imperium estatal também figura como pré-requisito essencial no entendimento de renomados juristas como Ronaldo Cunha Campos, para quem é o elemento do processo pelo qual os órgãos do Estado exercem a coação4.

José Frederico Marques, por sua vez, afirma que: A jurisdição é a força operativa, o processo, o modus operandi e o complexo instrumental em que o poder do Estado atua com finalidade compositiva de dar solução a conflitos de interesses, impondo a regra de direito objetivo adequada5.

Chiovenda6 entende que: A jurisdição consiste na atuação da lei mediante a subs-tituição da atividade alheia pela atividade de órgãos públicos, afirmando a existência de uma vontade da lei e colocando-a, posteriormente, em prática.

E Carnelutti, citado por Antônio Carlos Marcato, leciona que: A jurisdição é um meio de que o Estado se vale para a justa composição da lide, ou seja, a atividade jurisdicional por ele exercida através do processo visa à composição, nos termos da lei, do conflito de interesses submetido à sua apreciação.

O Prof. José Afonso da Silva perfila o mesmo entendimento7: De passagem, já dissemos que os órgãos do Poder Judiciário têm por função compor conflitos de interesse em cada caso concreto. Isso é o que se chama função jurisdicional ou simplesmente jurisdição, que se realiza por meio de um processo judicial, dito, por isso mesmo, sistema de composição de conflitos de interesses ou sistema de composição de lides.

Respaldado na síntese de renomados juristas, podemos concluir, portanto, que jurisdição é poder, função e atividade, inerentes ao Estado, devendo este aplicar o Direito ao fato concreto, buscando solucionar os conflitos existentes.

A manifestação do jus imperium estatal expressase mediante sua capacidade de decidir e impor suas decisões perante a população obediente à sua soberania consubstanciada a um determinado território geográfico, promovendo a harmonização de conflitos mediante a realização do Direito justo. O poder estatal é delegado às autoridades judiciais e às autoridades administrativas que se incumbem de legitimar seus atos de forma transparente por meio do devido processo legal.

A idéia de conflitos de interesse traz em si a de contenda, contestação, litígio. Por conseguinte, de ordinário, a jurisdição é exercida em face de pretensões contestadas, que caracterizam a verdadeira e legítima jurisdição.

Portanto, é de se admitir que existem dois tipos de jurisdição: a contenciosa, destinada a compor os conflitos de interesses entre os particulares ou entre estes e o próprioPage 102Estado, garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, conforme dispõe a Constituição Federal em seu art. 5º, XXXV e LV, e a jurisdição convencional, que alcança a solução da disputa mediante opção das partes em meios alternativos para dirimir conflitos.

Cumpre esclarecer, pois, antes de adentrarmos o estudo da jurisdição, o conceito de competência que seria, segundo Paulo Henrique dos Santos Lucon8, citando liebman, a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão. Portanto, podemos entender que o conceito de competência diz respeito, necessariamente, às atribuições dos órgãos estatais que exercem o poder jurisdicional.

3. Características Inerentes à Jurisdição

Dentre de suas próprias características, a legislação nacional consagra que a jurisdição só poderá ser praticada diante de uma lide por iniciativa das partes, conforme preceitua o art. 2o do CPC, bem como que as decisões dos agentes jurisdicionais poderão, num determinado momento, tornarse imutáveis pela coisa julgada ou trânsito em julgado da decisão (art. 5o, XXXVI, CF).

Some-se ainda a indelegabilidade da jurisdição: onde o juiz exerce a função jurisdicional por delegação do Estado e não poderá delegá-la a outrem. Nesse sentido, o CPC, no art. 1º, atribui o dever de exercício da jurisdição civil a juízes. Vejamos: Art. 1º. A jurisdição civil,contenciosa e voluntária, é exercida pelos juízes, em todo território nacional, conforme as disposições que este Código estabelece.

Segundo Hélio Tornaghi9: (...) o juiz junta-se ao legislador na tarefa de assegurar a ordem jurídica (de todos) e o direito (de cada um). O legislador o faz de maneira geral e abstrata, isto é, arquitetando a norma seguível em cada gênero de casos e sem consideração das particularidades de um por um; o juiz declara o que é correto em cada caso e tem em conta as respectivas circunstâncias. Em relação ao administrador, a posição do juiz é um pouco diversa. Ele não completa a obra administrativa, mas, ao contrário, afasta o administrador sempre que surge controvérsia. Se entre dois particulares ou entre um particular e um órgão público aparece uma discrepância, a decisão já não é deixada a funcionários administrativos, mas deferida aos juízes. Várias razões aconselham a substituição, para a garantia das partes e acerto do julgamento. Convém que o órgão encarregado de resolver os litígios: 1º – esteja vinculado à lei. Isto é, exatamente o inverso do que acontece ao administrador, cuja atividade é discricionária, guiada por critérios de oportunidade; 2º – fique livre da influência e das injunções do Poder...

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